A Bahia no mundo: Jorge Amado – uma biografia
Milena Britto – Professora da Ufba
Li o livro “Jorge Amado: uma biografia”, de Josélia Aguiar, quando terminava o período como Visiting Scholar na universidade de Berkeley. Não poderia ser mais apropriado o momento para ter em mãos esse verdadeiro mar de informações sobre o escritor Jorge Amado. Baiana como o biografado e a biógrafa, não me vejo nem por um segundo como tal sem a contribuição de muitas marcas deixadas nas obras do escritor. Foi lendo os seus livros na adolescência, sendo os meus preferidos “Capitães da Areia”, “Mar morto” e “Tenda dos milagres”, que comecei a entender que a Bahia é uma extraordinária força que condensa léxico, hábitos, geografia, ritmo, cultura, culinária, tipos humanos, cujo sentido ultrapassa fronteiras do estado para se completar em uma ideia de Brasil.
Por estar fora, pude claramente verificar que até agora há um Brasil consumido e visto a partir de imagens deixadas pela literatura de Jorge Amado. Mesmo com todos os perigos e com toda a polêmica sobre a “baianidade” que a obra de Jorge Amado ajudou a construir, não há como e nem porquê negar a sua importância. Já era hora de Jorge Amado ter uma biografia à sua altura, como já possuem vários intelectuais latinos de sua geração e similar trajetória.
Fazer uma biografia de figura pública importante é mexer direta e indiretamente com a vida de muita gente e, principalmente, é interferir na malha da história de uma pessoa e de uma época. Risky business, sabemos, mas não houve nada que assustasse Josélia Aguiar, que se mostrou uma pesquisadora cuidadosa, minuciosa e aguerrida para mergulhar em décadas e décadas de informações de todo tipo, de políticas e literárias a pessoais.
Interessante me deparar, entre outras coisas, com a atuação do escritor como deputado federal pelo Partido Comunista, ao lado de Carlos Marighella, outro baiano, e saber detalhes da sua luta para descriminalizar os terreiros de Candomblé, assim como outros projetos relevantes para a cultura brasileira. Se hoje temos violentas reações à religião de matriz africana, imagina quando era proibida, o que mostra um homem com disposição e coragem, e sobretudo consciente sobre os desequilíbrios sociais e raciais no Brasil. Foi prazeroso ainda ler sobre a paixão do jovem Jorge pela literatura e pela Bahia.
Jorge Amado, muitas vezes acusado de estereotipar personagens negras em seus romances, era praticante do Candomblé e um homem apaixonado e grato pela contribuição africana à nossa cultura, como deixa-nos ver Josélia Aguiar.
Comecei a leitura já engajada, tanto pelo conteúdo quanto pelo estilo de Aguiar que, sem deixar de ser elegante em nenhum momento, deixa-nos de presente livro a fora bons momentos de um gracioso e inteligente sentido de humor.
Dei sonoras gargalhadas vendo as peripécias dos jovens rapazes da Academia dos Rebeldes, com detalhes pitorescos da busca para uma sede para as reuniões, que iam de bares a centro espírita. Investigando da formação de Jorge Amado para entendê-lo como o fenômeno literário que se tornaria, Josélia acaba oferecendo um panorama vivaz da cena cultural e política da Bahia dos anos 30 ao início do segundo milênio.
Mesmo sabendo que estaria brincando com fogo ao escarafunchar a vida de um dos escritores mais famosos do Brasil, rodeado de polêmicas e de anedotas, amado por seus leitores e muitos de seus pares -nem sempre poupado pela crítica feroz dos principais críticos do país- a autora foi longe e juntou informações que vão de cartas pessoais, arquivos, jornais de vários períodos, livros, teses e toda a sorte de fonte que lhe possibilitasse forjar uma coerente e completa trajetória do escritor baiano.
A vida de Jorge Amado é rica tanto no aspecto pessoal quanto no aspecto político, pois o envolvimento do escritor com o Comunismo é destrinchado pela biógrafa, que deixa também evidente a inteligência aguçada e a generosidade, marcas do escritor que soube aproveitar-se de todas as situações a que esteve exposto, das mais simples às mais perigosas. Amado foi um apaixonado pelo Socialismo, mas ao decepcionar-se, depois de algumas décadas, foi também crítico do mesmo – na medida certa para escapar dos perigos da dissidência.
Há detalhes preciosos dos anos no exílio, dos encontros com escritores latinos, europeus, e mesmo outros artistas brasileiros exilados, o que acaba contando a história paralela de uma época politicamente complexa.
É importante dizer que o estilo de escrita de Aguiar deixa Jorge Amado conduzir o leitor, que vê a personagem transformar-se a cada época de sua vida. A autora, todo o tempo, alimenta a escrita com informações sobre o contexto e fatos ocorridos e consegue escapar à tentação de construir um personagem heróico ou sem defeito. Ao contrário, a autora não declina em deixar o leitor ver o fracasso da relação de Jorge Amado com a filha mais velha, Lila, que faz confissões emocionantes no seu diário, até então inédito, sobre a ausência do pai, sobre os seus sonhos simples de menina, como ter uma bicicleta que o pai prometeu e que nunca deu. Coisas assim estão ao lado de uma séria vida de conflitos políticos. Sabemos do cotidiano dessa filha e absorvemos a enfermidade e a morte de Lila com um pesar solidário, imaginando ela e sua mãe em sentimentos conflituosos a respeito de Jorge Amado.
A autora também faz o leitor tirar as suas próprias conclusões com o aspecto machista, às vezes adoçado por um certo romantismo ingênuo, que muitas vezes é entrevisto nas relações com as namoradas e companheiras ao longo da vida.
Ao mesmo tempo, também nos deixa ver a luta do escritor para que muitas mulheres que escreviam à época fossem reconhecidas por seu trabalho literário, como mostra sua defesa em torno da candidatura de Gilka Machado à ABL e a torcida para que outras escritoras recebessem prêmios importantes e reconhecimento à altura de seus talentos.
A complexidade humana e intelectual de Jorge Amado transparecida na biografia é também uma significativa contribuição dada ao leitor. Por todo o livro, observamos o autor mover-se entre a política, a crítica, o mundo editorial, mas também vemos o homem Jorge Amado como marido, pai, amigo, nem sempre acertando tudo ou sendo perfeito, mas obviamente sempre se repensando e tentando ser coerente. Aliás, é muito bela a relação familiar de Jorge Amado com seus filhos e netos, especialmente, é comovente ver a amizade, os desabafos e o carinho dele com a filha Paloma Amado.
A biografia de Jorge Amado traz informações caras e vastas sobre o funcionamento do campo cultural brasileiro de mais de quatro décadas. Traz também traços das personalidades de vários escritores e artistas, da Bahia e do mundo. Há relatos de relevantes encontros de Jorge Amado com nomes como Neruda, Saramago, Sartre, Simone de Beauvoir, Luandino Vieira, Mia Couto, Carybé, João Ubaldo Ribeiro, Dorival Caymmi, Glauber Rocha e tantos outros. A amizade de Jorge Amado e Glauber é um dos pontos comoventes da obra, como outros tantos, porque o autor de Dona Flor esteve próximo do cineasta baiano quando ele estava morrendo em Portugal, e despediu-se do criador do Cinema Novo emocionado, sabendo que não o alcançaria vivo quando o transferiram já nas últimas para o Brasil.
Obviamente a história da escritora Zelia Gattai -casada com o escritor numa cerimônia íntima apenas décadas depois de estarem juntos, quando ambos eram viúvos, já que entre o desquite e o divórcio foi um tempo longo até que as leis fossem favoráveis aos separados – vem junto com a de Jorge Amado, nas sempre generosas informações fornecidas pela pesquisadora.
Estar na Califórnia e ler “Jorge Amado: uma biografia”, me despertou para o que foi capaz de fazer um escritor, ou melhor, o que conseguiu acionar o homem e o artista Jorge Amado.
Estando fora da minha terra, em ambiente que não poderia ser mais distante do que é a Bahia como essa outra Bay, precisamente na peculiar cidade de Berkeley, é que mais impressionante me pareceu a história de um baiano que leva a Bahia a se transformar numa metáfora de Brasil, como fui observando ao encontrar tantos americanos que até hoje querem ir ao Brasil e à Bahia por terem lido obras de Jorge Amado.
Josélia Aguiar faz um louvável trabalho de trazer Jorge Amado, o escritor, o homem, o amigo, o pai, o esposo, o crítico, o Ogã de terreiro, o político, o polêmico, o apaixonado pela Bahia para o mundo do século XXI, revigorando o seu nome e deixando Amado à altura dos grandes intelectuais do mundo. “Jorge Amado: uma biografia” é uma obra rica, não apenas para a história de um mito como o escritor Jorge Amado, mas para a história cultural do Brasil.
Jorge Amado: Uma biografia / Joselia Aguiar. Todavia, 2018. 640 páginas.
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Milena Britto é professora da Ufba.